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Foto do escritorAnna Carolina Lementy

BBB24 demonstra, em tempo real, que chegou a hora de falar de psicose e delírio fora do consultório

24 anos no ar até que o Big Brother Brasil pudesse colocar na tela um sofrimento psíquico que pode estar determinado pela perspectiva psicótica. Evidentemente, este texto não estabelece nenhum tipo de diagnóstico (que, a partir da psicanálise, só pode ser feito sob transferência, no decorrer do tratamento, e jamais mediado por um programa de TV). Traz, no entanto, um conjunto de possibilidades, apoiadas em fenômenos que se relacionam mais com o estilo psicótico de acusar o mal-estar do que com o neurótico.


É necessário escrever com cautela por uma questão ética, como colocado anteriormente, e também por conta do peso que a palavra psicose e seus derivados têm em nossa cultura. Desde sempre associada à loucura, ao surto, ao manicômio, ao incompreensível, à violência (quando confundida com psicopatia), a psicose é uma palavra proibida, ao contrário de outras palavras-diagnóstico como ela -- um exemplo é o TDAH, popular em escolas, consultórios, famílias, conversas e no entretenimento de massa.


Da psicose menos gente quer saber, a não ser para linchar o estranho em praça pública, mas dentro da psicanálise ela é uma das três possibilidades de existência no mundo e na linguagem, ao lado da neurose e da perversão. No espectro da psicose, encontramos a esquizofrenia, a paranoia e a melancolia. Dá para esticar e discutir bastante esse tema, apaixonante e inesgotável, mas neste momento parece mais importante fazer um breve resumo dos últimos acontecimentos na "casa mais vigiada do Brasil".


Recentemente, uma das participantes do grupo Camarote (formado por pessoas não-anônimas), relata estar sendo perseguida, alvo de armações de terceiros nunca citados diretamente por ela. Desse modo, ela vai conectando situações e acontecimentos do dia a dia como em um jogo de enigmas. Essa trama complexa e cheia de sinais precisa ser decifrada para que ela esteja um passo à frente de seus inimigos e não seja "abalada emocionalmente" (palavras dela). Em sua leitura, os outros moradores se alternam, a todo momento, entre bons e maus, o que vai redefinindo incessantemente sua bússola particular. Assim, o jogo que é o Big Brother ultrapassa a busca pelo prêmio em dinheiro e fama e se torna um game de sobrevivência e de possibilidade de existência subjetiva.


Em um programa como esse, todo mundo sofre. Seja por estar sob escrutínio constante, seja pela sombra do cancelamento, seja pela dificuldade que é se relacionar. Neuróticos e psicóticos se afinam aí, porque estamos falando do olhar do outro, e dele ninguém escapa. Na dinâmica do programa, há um agravante: não se trata apenas do olhar daquele para quem se olha, mas daquele olhar impossível de ver, o de um país, ilustrado pelo bordão "o Brasil tá vendo".


É aí que temos uma diferença crucial quando se trata de neurose e psicose. Na neurose, esse olhar do Brasil (e dos jogadores) será adivinhado, antecipado, suposto, muitas vezes cairá no engano (por isso o Paredão é tão surpreendente para quem fica e para quem sai, muitas vezes); na psicose, esse olhar não encontra barreiras: é uma tentativa de invasão plena do corpo e é, acima de tudo, uma certeza. Se essa participante estiver mesmo passando por uma crise psicótica, ela não se acha o centro de tudo, ela tem certeza de que é o centro de tudo e o alvo de todos.


É possível ir além e abordar por que existe tal certeza irrefutável na psicose, mas me parece mais útil delimitar o delírio -- de perseguição, por exemplo -- como tentativa de reconstruir um mundo que ruiu. Neuróticos encontrarão outras saídas para se defender do outro (frequentemente, se refazendo como desejáveis), mas a narrativa delirante procurará por muito tempo um sentido que dê conta daquilo que se desorganizou. Tal estratégia pode ser encarada como uma tentativa de cura, ainda que escape da norma social, ou daquilo que conhecemos, do nosso comum.


Quando a psicose fura a bolha e acontece, por acaso, de um dos programas de maior audiência do Brasil, aparentemente, exibir ao vivo alguns de seus fenômenos, é hora de pensar coletivamente sobre delírios, psicose e preconceitos.



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