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Foto do escritorAnna Carolina Lementy

Braço

Esta história começa num barco. Com um certo tipo de alegria fúnebre, recitamos Bandeira. Diga 33. E ríamos. A nossa vida tinha um quê de tango argentino. Estava especialmente feliz, apesar da fumaça de cigarro, que me lembrava que, no mundo, existe muito incômodo. Que as pessoas sempre ultrapassam alguns limites.

Eu via o sol tingir as minhas pernas, eu mal podia acreditar naquele tom de azul, de verde. O mar e o céu. Marcel, meu passado, que, enfim, passou. Inevitável o jogo de palavras — desde que conheci Cortázar, mas sobretudo Lacan. Como quem antecipa a própria castração, eu pensava que não era possível ser tão contente assim.

Dali a alguns minutos, meu braço dilacerou. Como uma pele pode rasgar tão fácil? Subi à superfície, imersa em transparência, para ver o que tinha do lado de dentro. Ninguém está preparado para ver vermelho, amarelo, um rasgo mole, um tecido frouxo. Perdia ali um pouco da minha inteireza, da minha verdade sobre ser toda.

Dias antes, eu estava maravilhada com o poema “Autotomia”, de Wisława Szymborska, sobre se dividir em duas — uma metade para ser devorada pelo mundo; salvar-se com a outra. Uma bifurcação entre naufrágio e salvação, resgate e promessa; bordas que se tornam estranhas uma à outra. E, principalmente, “morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida. Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou […] Não morrer demais”.

Fui morrendo só o que podia, sem desmaiar, porque ali morreria muito. Continuava rindo com elas, porque sabíamos rir e porque o choque tem o estranho poder de desviar nossa atenção. Ri com o médico, quase chorei quando o enfermeiro sustentou meu braço, já terminando o curativo. Não havia carinho ali, mas eu precisava de alguma outra pele na minha pele. Uma pele que não fosse linha. Pedi para ele tirar uma pelinha do meu dedo ralado. Uma singela pelinha que eu não podia arrancar sozinha. Ele riu, dado o ridículo daquele pedacinho de carne. Era o meu sangue no chão.

Fui vivendo os próximos dias escondendo de mim e dos outros o horror. Eu queria que o tempo passasse até que eu pudesse olhar de novo. Ser olhada. Não tenho um apreço especial pela música, mas o título me vinha como uma promessa. Era “A Pele do Futuro”, Gal Costa:

“O sonho é ter tudo resolvido Com o passar do tempo pela vida A casca da ferida se formando A cicatriz na pele do futuro A pele do futuro finalmente Imune ao corte, à lâmina do tempo O tempo finalmente estilhaçado E a poeira sumindo no horizonte”

Frederico preferia Djavan, “Faltando um Pedaço”:

E o coração de quem ama Fica faltando um pedaço Que nem a lua minguando Que nem o meu nos seus braços

A sorte que eu tenho de ainda ter um braço. De tudo o que poderia ter dado errado deu muito certo. Esta virou minha frase-padrão.

Pensava muito em teoria psicanalítica também. A inteireza apenas imaginária do corpo. O pedaço que falta, de oito por quatro centímetros, colocou em questão cada parte minha. Retalho se tornou uma palavra muito presente. Até que, um dia, no setor de feridos do hospital, eu entendi que o corpo foi feito para acabar. As pessoas feridas tornam isso evidente, mas essa verdade já existia muito antes delas e existirá depois, para sempre, enquanto houver vida.

Na última vez, vi uma mulher com grandes crostas pretas pelo rosto. Uma outra, toda recoberta por uma pele queimada que insistia em renascer. Como ela conseguia? Os corpos são frágeis e fortes ao mesmo tempo.


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